quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Solta

Pela terra, emurchecida,
Uma folhinha rolou.

Era uma lágrima de vida
Que o Outono arrancou...


António dos Santos Matos, Literatura Actual de Almada

Daqui do fundo do grito

Daqui...
do fundo
do grito

eu grito
‘marrado
grito suado
e puxado
grito mais grito
e proscrito
grito danado
e ‘rasado

... suspiro
dentro
do grito!

Ah!
este grito!
este grito
semente
de forçar
à força
por dentro
da força
da mente!

Oh!
E bater!
bater às portas
abertas
... nas portas
todas
da gente!



António Oliveira Cruz, Autopoiésis

Papoila que me falta

Preciso de sal para o meu pão
Mas as forças já adormecem
O hábito instala-se na solidão
Morte nos sonhos que fenecem

A chuva anda em trocas com o Sol
E este tomando de frenesim os insectos
Eu mortinho por ti sob o meu lençol
A lamber as feridas internas dos afectos

Adiado sigo a lembrar-me de nós
Colado nos teus lábios vermelhos
Afasto, escondo, palavras sem voz
Seara de trigo, papoilas e cheiros



António Manuel Ribeiro, Se o Amor Fosse Azul que Faríamos Nós da Noite?

Fui-te buscar a Foz-Coa

Nos teus olhos me encantei,
Sou príncipe adormecido,
Cuidado não me despertes
Mas não me deixes esquecido.

Não te quero mais distante
Quero olhar-te à vontade
Vivendo a tua presença
E não morrer de saudade.


Lisboa mãe sofredora
Com filhos tão diferentes
Trata todos com carinho
Até os mais irreverentes.

Esquecer-te eu não posso,
Deste-me tanta coisa boa
Até a rosa que tenho,
A ti fui buscar a Foz-Coa.

Que bela seria a vida
Se todos dessem as mãos
Ajudando-se uns aos outros
Como verdadeiros irmãos.



António Machado Jorge, Versos Que Alguns Escreveram

Borras

O samba é lento e a cons-
trução do ritmo é vaga
na hélice de sons
que o fumo lambe e alaga.

Desembrulhou-se o mons-
tro acéfalo e a adaga
de um riso o descompôs
o brinca leve e afaga.

Quem foi que riu irmã?
Que monstro acéfalo há
no samba da manhã?

No bar o monstro é fumo:
teu riso foi glá-
dio e rumo do seu rumo!



António Leitão, Sabor a Crime

Vencer

VENCER,
é não perder…
nunca a razão,

VENCER,
é tentar compreender
qualquer pessoa
qualquer situação,

VENCER,
é, francamente, dar a mão
e abrir o coração
p’ra quem perdeu
ou está perdido.

VENCER,
é sorrir, abertamente,
p’ra quem venceu,
e, não ver nele um inimigo.

VENCER,
é o que tantos desejas?...
Pois vencerás,
se em qualquer situação
em que te vejas
puderem chamar-te sempre…

AMIGO.


António José Marques, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Pensamento em fúria

O olhar cansado
Observa a sala vazia
De pessoas e sentimentos.
Um gelo mecânico
Sobe pelo corpo
Derretendo-se no cérebro
Aquecido pelo pensamento em fúria.
Os passos no corredor
São fantasmas.
Os murmúrios das paredes
São vozes feridas
Na escravidão dos tempos.
No relógio das lamentações
Picam-se dias perdidos,
Há uma liberdade condicional
Na porta da saída.
Há um respirar acelerado
Na rua fria,
A chuva que cai lentamente
Refresca as ideias
Aprisionadas durante o dia
Nas salas onde pensar é proibido
Onde a memória se vai gastando.



António José Lopes, Literatura Actual de Almada

Do sonho

Não sei porque penso nas lagoas translúcidas
ao longo da Barra da Tijuca
Porque eu acordo para os difíceis passos
mas caminho com o futuro da Infância
numa planície transparente
como aves de chuva ao entardecer
e Águas tão fundas cercando o corpo
de súbitos outeiros
Porque eu acordo sílabas por dizer nas
fronteiras do País de corpo interior
Novo povo sobre o mapa
saudades a Norte das flores do Sul
Porque desperto
com a boca amarga
com impressão doce
de viagem
por uma conversa
à beira-Mar



António José Coutinho, Uma Dúzia de Páginas de Poesia,Colecção Índex Poesis, n.º 25

É a guerra

Este canto que eu canto
é um canto desolado;
- Ai o dos mancebos mortos
quente sangue derramado!...

Este canto que eu canto
é um canto dolorido:
- Ai o das noivas frustradas
branco tálamo perdido!

É de mágoas e de dor
o triste canto que eu canto:
- Ai o das viúvas jovens
desolado negro pranto!...

É de lágrimas e sangue
o meu canto amargurado:
- Ai o de quem perde um filho
terno peito alanceado!...

Eu não posso mais cantar
o triste canto que canto:
- Ai os dos meninos órfãos
olhos varados de espanto!...

Não canto mais este canto
que é um canto revoltado
- Ai que vida de martírio
p’ra quem fica mutilado!...

quente sangue derramado...

quente sangue derramado!!!



António Gil Antunes, Literatura Actual de Almada

Lua cheia

A brisa que vem do mar
Entra pela minha janela
E eu cá recebo o sal
Que me chega através dela.

O sal entra pelos pulmões
Vem do mar e dá-me vida.
É o sal dos corações
Que dão ao sal guarida.

De longe a brisa salgada
Que sopra ao fim deste dia.
É uma brisa encantada
Que a lua cheia irradia!...



António Duarte Vitorino, Poemas do Meu Coração

A vida é água que corre

Juventude,
ilusão que passa
na vida de todos nós.

Juventude,
Primavera a florir.
Que se julga eterna.
Mas que foge
Rapidamente
Sem se sentir.

Juventude
é fulgor,
audácia,
paixão.
É água que corre
para a ilusão!



António Correia, Linhas Curvas

Escrevo esta doença

Escrevo esta doença,
que é escrever.
Escrevo a luta da alma,
o uivo do lobo,
a orquestra das águas.
Escrevo a vergonha de escrever.
Escrevo as sombras das ruelas
e o sonho do poeta,
O amanhecer na cidade deserta
cheia de tudo.
Escrevo as noites claras
de cantos embriagadas.
Escrevo as palavras que teimam
em não calar.
Escrevo as portadas da velhice
e a sapiência da idade,
Escrevo o olhar dos mendigos
e a profecia dos loucos.
Escrevo a mente cega.

Escrevo esta doença,
que é escrever.



António Boieiro, Esta Doença Que é Escrever

Actor

Reverso de mim
por inversão de discurso,
represento a minha farsa
espelho do meu fracasso.
Tantas vezes ausente de mim
quando me procuro.
Representar-me a mim próprio...
Sacrifício supremo.
Espectador atento,
crítico terrível,
observo-me e recuso-me.
Ponto final.



António Alberto, Uma Dúzia de Páginas de Poesia,
Colecção Index Poesis, n.º 4

Pobreza

Amigo, como podes entender
Um mundo cheio de vileza,
Com crianças a sofrer
Só vestidas de pobreza?

Como podes entender
Quando passas num jardim,
Tantos velhos sem te ver
Embora olhem para ti?

Diz-me, Amigo, és tu capaz
De caminhar entre escolhos
Onde sentes não ter paz,
e segues fechando os olhos?

Amigo! Perguntar e perguntar
Sem resposta, que tristeza!
Mas crê: viver sem amar
É entender a pobreza.



Aníbal Sequeira, Vidas na Corda Bamba

Partir

Vou partir,
Adeus ao cais da vida,
deixa o meu barco sair.

Lágrimas, acenos, abraços,
Não. Nem um beijo de despedida,
Queria ficar nos teus braços,
Impossível, estou de partida.

O meu navio partiu,
Zarpou para longa viagem,
Sinto que a vida fugiu,
Fiquei sozinho na margem.



Aníbal Caetano, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Um pedaço do universo

Esta quietude de solidão
Afaga terrivelmente
Os meus hesitados sentidos.
Paira no ar algo perturbante.
Será que incha a angústia velha?
Sinto agora e só
O reumático cortante
Da revolta cansada.
Anseio a profilaxia,
Uma coisa nova de mais ser e sentido,

Existir e pensar;
Eis a nossa simplória condição.
Avarentos do que há-de vir,
Suportamos a nossa existência
Em nefandas – esperançadas
Interrogações.
Quem será por nós,
Quem?
Ainda não desvanecemos.
Ainda nos corre nas veias
Um sangue de desejo feito grito.
Quem é por nós
É quem insaciavelmente grita.
Quem grita diz:
- eu estou aqui,
Sou um pedaço de Universo!



Ângelo Rodrigues, Eu, o Ser e a Dúvida

Respiro um rosto frágil

respiro um rosto frágil,
um corpo que se diz ser.
não me encontro nos espaços transparentes
mas sigo-te e lembro-me da minha sombra

olho de água olho de água

primeiro nome não sonhado: o olhar que se vê;
o outro: um rosto abandonado ao ar, cego,
no caminho que vem.
sou o que veio
por um momento à luz – de tão longe.
olhos de silêncio olhos de silêncio

se não continuar, fico muda...
os lábios secam. a estranheza não respira.
há que tocar a morte dos dias
e jogar com os sonhos dos outros.

resta a ausência calada
resta um tempo do tempo
restam os restos das rezas das velhas do monte
os tijolos da casa vazia

resta o intervalo em vez do existir.



Ângela Ribeiro, Debaixo do Bulcão – Poezine, n.º 23

Palavras desfocadas, desprovidas de sentido

Palavras desfocadas, desprovidas de sentido
Saem-me da boca a qualquer momento
Palavras perigosas, sentimentos perigosos
Palavras que se transformam em cheiro
E que me agoniam, fazem-me vomitar
Vomitar sobre a maré, que olha para mim e pensa... palavras
Salgadas... salgadas para ti. Por isso salgo, sinto, cheiro!
Cheiro tudo aquilo que
Conseguir!
No entanto não consigo nada.
Bloqueias-me os pensamentos... Oh! Tu vida
Tolhes-me
O que resta desta viagem.



Andreia Egas, Debaixo do Bulcão – Poezine, n.º 23

Al Berto

Viveste
Com sofreguidão atravessaste desertos áridos
Águas revoltas
Dias e noites intensas, doridas, sofridas
Eras a própria essência da vida
Um dia partiste
Tão inesperadamente, para mim
Em meu peito ficou esta mágoa, de não ter dito adeus
Sonho
Surges nos meus olhos
Como se sempre ali estivesses estado
Olhas-me e sorris
Quero falar-te
A voz prende-se na garganta
Quero tocar-te, não consigo
Estás muito acima de mim
Pairando na quietude deste fim de tarde
Dizes-me «Não deixes nada por viver!»
E a tua luz inunda a minha alma
O sol derrama-se neste fim de dia
O cheiro a maresia invade-me
Sei que estás aqui neste momento
Segurando a minha mão que te escreve
Viverás para sempre no meu coração
Meu poeta dos “Mares-de-Leva”
Sei que um dia voltaremos a nos encontrar
E então poderei dizer-te:
OBRIGADA.



Anabela Ferreira, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Deserdada

De pés descalços, rota, quase nua
O frio rasgando a carne dolorida.
P'la fome já tão fraca e tão vencida
Ela tropeça em quantos vão p'la rua.

E logo em sonhos sua alma flutua
E por momentos fica convencida
Que não será p'ra sempre assim a vida
Não pode ser tanta a desgraça sua!

E são seus sonhos fumo em espiral
Naquele dia véspera de Natal!
Criança pela sorte deserdada!

Constrói um mundo deste tão diferente
Com igualdade para toda a gente
E um lar a cheirar a madrugada.



Anabela Dias, Uma Dúzia de Páginas de Poesia,
Colecção Index Poesis, n.º 41

Construir de novo

Nervosamente
Construí um castelo de areia
Depois
Fiquei-me nas ameias
Para ver o que acontecia
À minha construção...
Veio o vento
Os alicerces abanaram
Veio a chuva
A areia das paredes escorreu lenta
Quase que pesadamente.
Vento-chuva
E a certeza
Do meu castelo a ruir!...
Nervosamente
Olhei o mar
A força das marés a rebentar
Então devagar
Muito devagar
Andei descalça pela areia húmida
Senti na boca a espuma das ondas
Absorvi a teimosia das marés
E sem sentir cansaço
De novo construi...!



Ana Trigal, Literatura Actual de Almada

A noite

Devagar
a noite desceu à cidade
procurou
Rostos apagados de pó
na memória do que somos
subiu corpos gelados pela saudade
Deixou-se escorregar
Devagar...
Tão devagar que o medo do que fomos
e a escuridão do que seremos
Despiu-se nas lágrimas dos teus olhos

A noite desceu à cidade para amanhecer

- Lembro-me dos passos.



Ana Paula Nogueira, Literatura Actual de Almada

Um passeio pela rua da amargura

Um passeio pela rua da amargura,
Todas as noites o mesmo tormento!
Procuras sem fim
O que podes encontrar,
Vivendo preso num momento
Há muito passado,
Há muito esquecido...
Tempo que corre sem perdão
Tempo que se esvai sem parar
Larga-te nessa solidão!
E tu, percebendo sem querer
Crês que assim não é
Ergues a cabeça
E fincas o pé.
Teimosia, a quanto te dás!!!
Corres sem olhar
Corres no escuro
Não sabes para onde vais,
Apenas parado não queres ficar...
Corre pois, meu amigo,
Que de parados está o mundo cheio!
Corre por quanto podes,
Corre por quanto precises,
Corre para dessa rua saíres,
Corre para nela não ficares...



Ana Palma, Debaixo do Bulcão – Poezine, n.º 21

Da janela

Um prédio velho e sujo
Diversos telhados que se sobrepõem
Gatos que sobem às chaminés
Que fumegam o exterior das habitações.

Ao longe um jardim
Uma fonte, donde não corre água
Um canteiro onde as flores morreram
Baloiços onde já não brincam crianças
Bancos onde dorme gente.

As ruas estão cheias de pessoas
Correm
Como águas paradas num charco
Lutam pela sua liberdade individual
Amarradas à sua insignificância
Como indivíduos que são
Objectivam qualidade de vida
Conseguiram apenas ser escravos da sua auto-ditadura.

Isto é apenas um bairro de LISBOA!!!



Ana Monteiro, Debaixo do Bulcão – Poezine, n.º 20

Só no teu peito

Só no teu peito
de menino e de poeta
com o teu coração
descompassado de amor
entorpecido de ternura
a pulsar no meu rosto
posso derramar
essa lágrima sem fim
de plenitude
de medo
de esperança
e de mim.

Só no teu peito
cristalizado e perdido
encharcado de emoção
o coração do poeta
bate em compasso
de menino.

Só no teu peito
(no teu peito)
posso chorar assim.



Ana Maria Feitosa, Literatura Actual de Almada

Mulher

São anos de humilhação,
De anulação,
De maus tratos,
De ser transformada
Em máquina de parir,
Sem direito ao seu corpo.

São milhares de anos
A ser esquecida
E convencida
De que nada vale.

A guerra é grande
E dolorosa,
Os resultados são lentos demais,
Mas já assustam muitos.
Porque pior do que ser esquecida,
É ficar calada.

A tua voz é forte
E sentida, com razão e sabedoria
(A que adquiriste de tantos anos
veres e nada dizeres)

És a força da vida
Transformada em luta
E vontade de vencer.



Ana Lúcia Massas, Lado Esquerdo, n.º 7

Acertei o passo

Olhei para ti
E fiz logo o teu prefácio,
Acertei no passo
Com a música do teu corpo,
Senti saudável a tua aparência
Na frescura do teu ar,
Passei a conhecer-me
Muito mais intimamente
Descobri o meu lactente,
E tu dono do meu pilar
Fizeste-me soluçar,
Sofri com a nossa vivência
Mas foi sempre contigo
Que eu pude encontrar
A minha cadência.



Ana Bela Cardoso, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Quadras sentidas

Não sei o porquê de muita gente
Cobiçar o que não é seu
Pois eu sinto-me feliz
Com o pouco que Deus me deu.

Não sei porque queres ser rico
Pensas ter mais valor
Pois para mim a riqueza
São a amizade e o amor.

Eu fui uma criança que
Nasceu de pais pobres
Vivia numa casa simples
Mas havia palácios enormes.

Porque nem todas as crianças
Vivem com Paz e Alegria
Umas vivem na realidade
Outras na fantasia.

Eu tenho Fé em Deus
Na Fé não há engano
Que o dia da criança
Passe a ser todo o ano.



Amélia Galvão, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Destino

Bati à porta da sorte
A ver se ela me atendia.
Tornei a bater mais forte
Mas a porta não se abria.

Por mais que a vida se entorte
Por maldição ou castigo.
A puta da Dona Sorte
Nunca quis nada comigo.

Fui-me embora contristado,
Lentamente a meditar,
Quando ia mais apressado
Dei de caras com o Azar.

Ele abraçou-me e agora
É meu amigo e meu guia,
Hoje tenho a toda a hora
O Azar por companhia.

É sina de toda a gente
Ter um destino a cumprir.
Seja ateu ou seja crente
Ninguém lhe pode fugir.

Boa ou má, azar ou sorte
A vida decorre assim.
Até vir a mão da morte
A tudo isto pôr fim.



Álvaro Pereira Sousa, Versos que Alguns Escreveram

E se tudo for nada?

E se Tudo for Nada?
E se Nada e Ser se tecerem
Na confusão amorfa do Caos inicial?
E se Tudo derivar em Caos final?
Não penso. Penso mal.
Sinto apenas.
Plantei aquela roseira de pétalas vermelhas
Em Maio as colherei
E sobre o mármore a mais bela ficará.



Álvaro Ferreira Gomes, Até Sempre Raquel

Fim de tarde

Fizeste-me regressar à vida
por um caminho afectuoso e bem diferente.
Abris-te a porta esquecida
Para um mar de paixão inabalável, ardente
- e com um enorme desejo de escrever
este poema que extravasa de amor -
percorrerei esse teu corpo incandescente
com uma vontade incontrolável de querer
saborear este momento eternamente…
possuir-te sem limites de prazer.



Álvaro Costa, Escritos no Vento

Vidraça

Gotas de chuva escorrendo pela vidraça
de memórias perdidas
refrescando a pele escaldante da lareira:

Mil e uma gotas descendo,
doce afago o da água le(a)vando
poeiras.



Almerinda Teixeira, O Colar dos Amieiros

Soltas

Meu amor é como um gato
com o seu ronronar brejeiro,
deita as unhas de fora
como a gato traiçoeiro.

Queres sentir bom ambiente,
com Almada vem dançar,
Pois o São João está contente
e à fogueira vai saltar.

O meu amor vai e vem
tal como as ondas do mar,
pois tem sempre cama certa
porque lhe vou perdoar.

Com o seu cravo vermelho
e a janela engalanada,
brilha tal e qual um espelho
o São João de Almada.

Gostava de ser a neve
branquinha como algodão
e o vento muito leve
a levasse ao meu coração.



Alice Marçal, Versos que Alguns Escreveram

Sonho

Meu corpo vagando
Na casa perdido
Vai lembrando sonhos
De toda uma vida.
A vida perdida e espaços vazios
A não ser de beijos, com quem reparti-los
Foram muitas as bocas
Que beijei na vida:
Só nunca encontrei
Beijos por medida.



Alice Luiz, Uma Dúzia de Páginas de Poesia,
Colecção Index Poesis, n.º 2

Despedida

Não quero que o rosto
acuse
o sentido trágico da angústia
de te ver partir.

Não quero deixar
nada
sobre o vazio do teu pensamento
e tragicamente sentir
a tua sombra vegetar
para além do meu sonho

Porque esquecerei
E tu partirás.

Não quero fixar
sob o signo do remorso
a solidão do teu crer
e ante a fúria das palavras
tento procurar
desvendar o mistério
que ronda por entre os teus olhos
e de miragem em miragem
escutar os sons das pupilas
dilatando a esperança.
Tu partirás
e o sol florirá
porque nasceste primavera



Alfredo Canana, Rasgo um Espaço no Teu Corpo

Nada e tudo

Parti numa hora de loucura
e agora longe de ti
vivo arrastado
o desejo da ausente
que vislumbro
e sinto no fundo de mim
presente
resultado do silêncio
disseminado em ondas de calor
inundando este vazio pleno

Entre o nada e o tudo
o que me falta e o que contenho
e o que pressinto de ti
a cada momento te amo
mais e mais e mais
e mais repito ainda
que te direi uma vez mais
como te amo

A sombra deste sol abrasador
fermenta o nosso amor
num cosmos azul profundo
onde te direi
envolta em nuvens de prazer
e felicidade
no momento extraordinariamente preciso
de te apertar enfeitiçado
e magnético
nos braços ávidos de carícias
COMO TE AMO



Alexandre Castanheira, Desilusão Optimista

Nasceram duas rosas

Nasceram duas rosas
no meu pequeno jardim
nasceram dois amores
que eram tudo para mim

Cresceram lindas
lindas de encantar
foram feitas de amor
para me extasiar

Mas num dia quente
uma rosa murchou
cheia de tristeza
a outra rosa chorou

O jardim ficou triste
faltava alegria e cor
mas num canteiro havia
ainda uma flor

Flor cheia de vida
rosa de linda cor
ficou para me dar
carinhos e amor

Obrigada linda rosa
Por me quereres tanto
Obrigada flor amada
Por secares meu pranto



Alcina, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

A transfigurada noite

Retenho durante a noite
A carícia de um tempo

E sobre as folhas
Do
Teu cabelo
Conheço o ruído
Da distância perdida
Deixar devorar
O já perdido corpo
Na floresta do teu ser.
A carícia
De um tempo
A linguagem na noite acesa
Do cântico fugidio.
Doloroso
Do passado tempo perdido.
Porque a falar
Cobres a boca
De sorrisos
E transfiguras
A noite que ficou perdida no silêncio.



Albino Moura, O Assobio do Poeta

Desenhos preocupantes

Mostrar (assumir)
o que crio e recrio
o que faço e refaço não é mais que
pretender dizer que
(embora com dificuldade)
respiro
mas que o risco do meu lápis
está carregado
de quotidianos cinzentos.



Alberto Oliveira, Literatura Actual de Almada

Apenas silêncio

Só eu oiço o silêncio
das tuas mãos nas minhas.
Quando...
as minhas mãos nas tuas,
têm mais silêncio ainda.



Alberto Afonso, Primeiros Poemas

Soneto: canta o esposo

o sol declina, caem com a noite as aves
enrolo-me no tempo que amofina
e tu dormes à sombra da neblina
tudo são fantasias muito mais que suaves

matéria ocasional, ilumina-se as naves
a cigana acordada lê a sina
calou-se o sino, abandonou-se a mina
um cigarro que acendo: fazemos as pazes

era bom assim perdoar as dores
e darmo-nos ao manjar da grande ternura
mas acordo: aperto atacadores

invento a rua, vou como quem fura
a página do canto nono (dos amores)
não sei se sou quem sou, isto é sem cura



Affonso Gallo, Debaixo do Bulcão – Poezine, n.º 21

Uma manhã qualquer

O cheiro a café enche a casa
Abro a janela
Exactamente como faço
Há vinte e cinco anos
O meu olhar salta em frente
Há pessoas na paragem do autocarro
Inertes como estátuas

Os músculos da minha mão
Ainda estão tensos
Inclino levemente a cabeça
Para ouvir melhor
Algumas vozes que sobem até mim
A erva muito verde
Nasce pelos interstícios da pedra

Se eu fosse um monge tibetano
Ficaria acocorado no chão
Com a cara iluminada
Por um sorriso
Elogiado interiormente
A diversidade das aparências do ser



Adélio Afonso, Literatura Actual de Almada

Romaria

Eu queria tanto que este Mundo fosse
Oh! Como a festa linda duma aldeia:
- tirinhos a brincar, e acabou-se.
De músicas e luz a rua cheia!

Da gente que a alegria à terra trouxe,
ser um abraço o fogo que incendeia,
fumo só de farturas, e assim doce
o ar que se respira e nos enleia!

Batalhas, só de risos e flores,
Marchar, na procissão com os andores,
Viver como quem dança, em harmonia,

e eu, alto, nos céus tremeluzindo,
um Foguete de Lágrimas caindo
embelezando a noite à ROMARIA!



Ada Tavares, Poesia a Cinco Vozes da Margem Sul

Amigos

Conhecidos tenho aos centos
Amigos tenho alguns.
Ser amigo dos amigos
Não é favor algum.
Dos amigos dos que tenho
Carlos Costa é, dos que se não escusa,
De ser mais um amigo,
Dos que tenho muito empenho
De o poder contar comigo
Pois, ser amigo de um amigo
Não é favor algum
Se assim não for
A consciência nos acusa:
Ser amigo sem o ser
É melhor não ser nenhum.



Abrantino Escusa, “Verdadeiramente” Eu e os Meus Amigos

Nómada

Vim da minha terra
Vim sem passaporte
Vim de terra em terra
Vim tentar a sorte

A sorte tentar
Para aqui chegar
Muita terra vi
Antes de chegar

Antes de chegar
Tive de emigrar
Nómada emigrado
Ao aqui chegar

Raízes criei
Sem esquecer raiz
Sou imigrado
Aqui no meu país.



Abrantes Raposo, Jubileu Aurífero